A figura de São Cipriano mago é lendária.
Deve ter sido criada no século IV e na Ásia Menor para ilustrar um tema caro aos antigos: a do feiticeiro que vende a sua alma ao diabo, mas se converte a Cristo. A figura de Cipriano mago a lenda associou a da Justina, virgem a mártir, também para ilustrar um tema muito estimado pelos cristãos: a da virgem que supera as armadilhas do homem que a quer seduzir. O autor da lenda deu ao mago convertido o nome de Cipriano, que era a de famoso bispo de
Cartago martirizado em 258. O recurso a este nome obteve mais estima e crédito para a lenda, que na Idade Média foi corroborada pela introdução de S. Cipriano e S. Justina no calendário litúrgico (aos 26/09). O “Livro poderoso de S. Cipriano” tem seu núcleo já no século IV, quando se difundiam as “preces de Cipriano”, utilizadas quase como fórmulas mágicas.
Popularmente
fala-se muito do um São Cipriano, mago, que teria deixado um “Livro
Poderoso”: “lido para a frente, lido para trás”, esse livro provocaria
fenômenos estranhos: as vacas parariam de dar leite, os animais
adoeceriam, os homens seriam prejudicados. Daí as perguntas: quem foi S.
Cipriano mago? Quando viveu? Que Livro Poderoso deixou? É o que vamos
examinar.
1. São Cipriano e seu livro
A
história conhece um S. Cipriano que foi bispo do Cartago, no Norte da
África entre 249 e 258. Deixou numerosos escritos teológicos, hoje em
dia editados, que nada tem a ver com magia ou ocultismo. Gozou de grande
fama e estima após a sua morte, pois foi um mártir heróico, que marcou a
Igreja do seu tempo. A sua festa é celebrada a 16 do setembro.
Aos
26 de setembro o Martirológio Romano (= Catálogo de Mártires)
assinalava a festa dos mártires S. Cipriano e S. Justina. A história
dessas figuras é narrada em grego, latim, sírio, árabe, etíope, copta e
pálio-slavo – o que bem mostra quanto os antigos valorizavam esses dois
personagens. Essas várias versões não coincidem sempre entre si; ao
contrário, divergem por vezes. A mais antiga delas, a grega, refere o
seguinte sob o título abaixo:
1.1. “Conversão de São Cipriano”
No
começo do século IV, em Antioquia da Síria o diácono Prailio pregava as
verdades da fé, quando uma jovem chamada Justa o ouviu a partir de uma
janela e ficou impressionada. Ela contou o fato à sua mãe Cledônia, que,
por sua vez, o relatou a seu marido Edésio. A família ficou perplexa,
sem saber a que faria; todavia na noite seguinte apareceu-lhes Jesus
Cristo com seus anjos e lhes disse: “Vinde a mim e eu vos darei o reino
dos céus”. Em consequência, chegado o dia, pai e mãe levaram a filha ao
diácono Prailio, que os apresentou ao bispo Optato. Este os batizou e
ordenou sacerdote Edésio, que era pontífice de um culto pagão. Edésio
morreu dezoito meses depois; Justa entrementes frequentava assiduamente a
igreja, onde um jovem, de nome Aglaidas, a via muitas vezes passar e se
apaixonou por ela. Pediu-a em casamento; mas Justa recusou-se, dizendo
que queria permanecer virgem. Então Aglaidas, acompanhado do amigos,
colocou-se no sou caminho, vedando-lhe a passagem; queria raptá-la. Mas
as mulheres que acompanhavam Justa, puseram-se a gritar tanto que os
servidores e vizinhos acorreram, pondo os agressores em fuga.
Aglaidas
não desistiu do seu intento. Sabia que existia um mago poderoso chamado
Cipriano; foi procurá-lo, prometendo-lhe dois talentos (grande
quantia), caso conquistasse o coração de Justa para o seu pretendente.
Cipriano então evocou um demônio… Este lhe entregou um veneno, que devia
ser espalhado em torno da casa da moça. Quando esta se levantou para
rezar, sentiu o ataque do Maligno; mas logo fez o sinal da Cruz sobre si
e sobre a casa e orou fervorosamente ao Senhor. A vista disto, o
demônio comunicou a Cipriano que a tentativa fora malograda. 0 mago,
querendo salvar sua fama, chamou outro demônio, mais poderoso; também
este foi vencido, mas não quis revelar a Cipriano o artifício que o
desbaratara.
O mago, ainda mais
ardoroso, evocou o pai dos demônios, que lhe apareceu, prometendo-lhe
entregar a moça dentro de seis dias. Apresentou-se o tentador a Justa
sob a aparência de uma jovem… Esta declarou a Justa que Jesus Cristo a
enviara para levar com Justa uma vida perfeita. E acrescentou:
“Que
recompensa esperas receber por guardares a virgindade? Vejo-te esgotada
pelos jejuns”. Ao que Justa respondeu: “O fardo é leve, mas a
recompensa é enorme”. Prosseguiu o Maligno ainda disfarçado: “No começo
Deus abençoou Adão e Eva, dizendo-lhes:
“Crescei,
multiplicai-vos, e enchei a terra’. Parece-me que, se perseverarmos na
virgindade, desprezaremos a palavra do Deus e seremos tratadas como
rebeldes no dia do juízo final’. Justa sentiu-se abalada por esta
observação, mas recuperou-se e, fazendo o sinal da cruz com oração,
soprou sobre o demônio, que fugiu.
Cipriano
então pediu ao Maligno que lhe dissesse por que e como fora derrotado. O
demônio só consentiu em falar depois que Cipriano lhe jurou que
permaneceria sempre fiel ao demônio. Confessou, pois, que o poder do
sinal do Crucificado ultrapassava o poder das trevas. Isto enfureceu
Cipriano, que tratou o diabo de mentiroso; mandou-lhe que se retirasse;
quando o Maligno quis pular sobre Cipriano para sufocá-lo, Cipriano o
repeliu fazendo o sinal da Cruz. A seguir, foi procurar o bispo Antímio,
a quem pediu que o instruísse na fé cristã e, ao voltar para casa,
destruiu os seus ídolos.
No dia
seguinte, que era Sábado Santo, Cipriano voltou à igreja, onde ouviu
leituras sagradas e a homilia do bispo. No momento em que o diácono
Astério convidava os catecumenos para se retirar, Cipriano ficou na
igreja para grande surpresa do diácono, que insistiu dizendo: “Cipriano,
levanta-te e sai”. Replicou
Cipriano: “Tornei-me servidor de Cristo e
tu me expulsas!” Então o bispo, informado do caso, batizou Cipriano.
Oito dias depois, deu-lhe o ministério do leitor; vinte e cinco dias
mais tarde, fê-lo ostiário e subdiácono; cinquenta dias depois, diácono
e, finalmente, no fim do ano, presbítero. Passados dezesseis anos,
Antímio estava para morrer e obteve que Cipriano lhe sucedesse na função
episcopal. Feito Bispo, Cipriano terá promovido a jovem Justa ao cargo
do diaconisa; trocou seu nome pelo de Justina e a fez Superiora de uma
comunidade monástica. O resto da vida do Cipriano terá sido dedicado a
combater as heresias.
A narração da
Conversão do S. Cipriano tem na literatura antiga dois complementos, do
índole grotesca, como são a “Confissão do Cipriano” e “Paixão do
Cipriano”. Eis o seu conteúdo:
1.2 A “Confissão de Cipriano”
A
“Confissão do Cipriano” é uma ampliação infeliz da “Conversão”. Nosso
relato Cipriano toma a palavra para explicar seu relacionamento com o
domínio, as feitiçarias e os encantamentos que praticava. O autor da
narração acumula as histórias de artes mágicas e às vezes cai no
ridículo; assim, por exemplo, refere que Aglaides tomou a forma de um
pássaro que se colocou sobre um telhado a fim de espreitar Justina;
todavia, logo que conseguiu ver a moça, perdeu a qualidade de pássaro
(que ele adquirira por feitiçaria); retomou a sua condição de homem e
experimentou muita dificuldade para descer do telhado.
Leia também: O martírio de São Cipriano de Cartago
Tratado sobre a Oração do Senhor: São Cipriano
1.3. A “Paixão de Cipriano”
Esta
narração responde a necessidade de terminar os relatos anteriores. o
autor recorreu a traços comuns de narrações anteriores. Refere, por
exemplo, que Cipriano e Justina foram presos por ordem do Conde Eutólmio
e levados para Damasco. Após um interrogatório, Cipriano foi dilacerado
por unhas do ferro, enquanto Justina era chicoteada ferozmente. Contudo
permaneceram insensíveis. Levados de novo ao tribunal, foram condenados
a morrer numa caldeira de óleo fervente; este, porém, se tornou para
eles ocasião de um banho reconfortador; ao verificá-lo, um sacerdote
pagão acusou-os de magia e aproximou-se do fogo da caldeira, que
imediatamente o devorou. Finalmente o juiz terá enviado os dois mártires
para Nicomédia, onde residia o Imperador Dioclociano. Este mandou que
fossem decapitados; o carrasco executou a sentença juntando a Cipriano e
Justina um certo Teoctisto, que passava por perto. Os seus cadáveres
foram expostos às feras, que os deixaram intatos. Seis dias depois,
marinheiros cristãos levaram os corpos para Roma, onde uma certa Rufina
lhes deu honrosa sepultura.
Eis o que se narra a respeito do S. Cipriano mago e mártir. Vejamos que a credibilidade destes relatos.
2. Ponderações críticas
1. Tais narrações são, pelos historiadores modernos, unanimemente tidas como lendárias. Na verdade, deve-se observar que:
a) nas listas dos bispos de Antioquia não só encontram nem Optato. nem Antímio, nem Cipriano.
b) O culto dos mártires sempre esteve ligado aos túmulos respectivos. Ora não se conhece na antiguidade ou na arqueologia e sepulcro do S. Cipriano, virgem e mártir. O autor da “Paixão de Cipriano”, para fugir à objeção de que não há sepultura de S. Cipriano em Antioquia, imaginou que o corpo de herói tenha sido trasladado para Roma; todavia em Roma não se conhecia o túmulo de S. Cipriano na antiguidade. Somente na Idade Média julgaram os cristãos ter encontrado as relíquias de Cipriano e Justina em Roma, perto do Batistério de Latrão; foi então que a festa dos dois “mártires” foi introduzida na Liturgia de Roma.
Assista também: Quem é São Cipriano, Mago? Ele realmente existiu?
2. Negada a historicidade dos relatos, pergunta-se: por que e como tiveram origem?
Tais
narrações retomam dois temas caros aos antigos cristãos: o do
feiticeiro que vende a sua alma ao diabo, mas se converte, e o da virgem
que triunfa do homem que a quer seduzir. Os antigos se compraziam em
ouvir ou ler relatos desse tipo; daí a confecção da estória de Cipriano
mago convertido, e Justina. virgem vitoriosa. Essa estima da temática
fez que a lenda encontrasse logo grande aceitação, de mais a mais que
utilizava nomes famosos (misturados anacronicamente num só relato):
Optato era um bispo do Norte da África, citado nas Atas das Santas
Mártires Perpétuas e Felicidade; Antímio era um bispo mártir da
Nicomédia; Cipriano foi um grande bispa do Cartago (anterior aos outros
bispos citados); Edésio foi um filósofo. Todos esses personagens eram
famosos em Antioquia no século IV (época em que se julga tenha tido
origem a “Conversão do Cipriano”). Também Justa e Justina eram nomes
assaz difundidos na antiguidade. Os outros nomes dos relatos
encontram-se todos em obras da literatura dos primeiros séculos.
Muito
contribuiu para dar valor a estória em pauta a confusão feita do
Cipriano mago com S. Cipriano, bispo do Cartago, caro à Igreja antiga.
Houve relatos, hoje perdidos, que tentavam fundir a “vida de Cipriano
mago” com a história real do S. Cipriano do Cartago, como se este
tivesse sido feiticeiro. S. Gregório, bispo do Nazianzo, na Ásia Menor,
proferiu um sermão em 379, no qual se servia das narrações espúrias
relativas a S. Cipriano, bispo do Cartago e mago; pouco depois, o poeta
latino Prudêncio se deixou levar pela mesma ilusão.
Aos
poucos o crédito dado a essas versões todas fez que os nomes de
Cipriano e Justina constassem dos Martirológios antigos a partir do
século IV. A contar dessa época foram também aparecendo “Preces do
Cipriano”, utilizadas como fórmulas quase mágicas; deste núcleo fez-se
aos poucos o “Livro Poderoso do S. Cipriano mago”, que nada tem que ver
com dados históricos nem com a fé católica. Se algum efeito
extraordinário ocorre por ocasião da leitura do “Livro Poderoso de S.
Cipriano”, isto se deve unica¬mente ao poder da sugestão; quem acredita
que tal Livro produz efeitas portentosos, predispõe-se a “vê-los”,
“experimentá-los” ou mesmo “produzi-los”…
Em conclusão:
1) distinga-se de S. Cipriano. bispo do Cartago (*258), grande escritor
cristão, o lendário personagem dito S. Cipriano mago; 2) a magia e a
feitiçaria não se coadunam com a mensagem cristã, que recorre à oração
em atitude humilde e confiante, sem fórmulas ou receitas
“todo-poderosas”.
***
A propósito ver “Vie dus Saints et Bienheureux” par les RR. PP. Bénédictins de Paris, tome IX, Septembre, pp. 327-338 e 529-534.
A propósito ver “Vie dus Saints et Bienheureux” par les RR. PP. Bénédictins de Paris, tome IX, Septembre, pp. 327-338 e 529-534.
1
Na Igreja antiga, os catecúmenos eram as pessoas que se preparavam
para o Batismo, só lhes era lícito participar da Liturgia da Palavra. –
O relato apresenta aqui certa incoerência, pois no Sábado Santo é que
se costumava ministrar o Batismo aos catecúmenos.
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